Fäviken: quando vale a pena ir ao fim do mundo para comer
18/02/13 18:23Eu bem que tentei ter vontade de escrever outro post, sobre outro tema, antes a voltar a falar da minha ida à Suécia. Mas meu jantar no restaurante Fäviken, lá no fim do mundo, 700 quilômetros ao norte de Estocolmo, não me sai da cabeça. Fico apertando rewind, play, rewind, play na minha cabeça, revivendo cada lance de uma aventura absolutamente mágica.
E que aventura! Eu e minha amiga e parceira de trabalho Marie-Claude Lortie pegamos um trem noturno para chegar, oito horas mais tarde, na cidadezinha de Are, estação de esqui, para dali andar mais meia hora em nosso carro alugado até a fazenda isolada onde fica o Fäviken.
(A terceira mosqueteira, Hivron, detesta trens esquisitos e foi de avião).
(Parêntese: as fotos da Marie-Claude, descritas no blog dela, em francês, neste link)
Bastou chegarmos para o cenário, por si só, já nos tirar o fôlego. Uau!
O jantar começa às 7 em ponto, para as 10 ou 12 pessoas que eles recebem por noite. Todos comem a mesma coisa, ao mesmo tempo, em um salão que mais parece um celeiro, com jeito de século 18.
Os aperitivinhos, ou “snacks”, são servidos no salão de baixo, espécie de lounge rural, com grande lareira em um dos cantos. Um dos primeiros foi este abaixo, já famoso: uma conchinha de sangue de porco com ovas de salmão dentro. Não-curadas, bem fresquinhas, quase doces.
E que tal esse croquetinho de miolo de porco, com meio “gooseberry” fermentado por cima para dar um crunch, e sal de pinho? Minha avó, que amava miolos, aprovaria. Uma nuvem crocante, cremosa por dentro.
Líquens, já comeram? Melhores do que podem imaginar, também ultra-crocantes.
Aqui já pulei alguns… serviram uns crisps de semente de linho com dip de mexilhões (ótimos), uma espécie de presunto de ganso feito ali mesmo, também ótimo, um quadradinho de queijo feito na hora (sim, na hora, literalmente 5 minutos antes de ser servido!), sedoso e leitoso.
Muitas pessoas costumam achar que todo restaurante de chef famoso servindo longos menus faz cozinha “moderna” ou “molecular”. Besteira generalizar. No Faviken, a comida é comida mesmo, reconfortante, gostosa, reconhecível. Vide esse lagostim com “creme quase queimado”. De queimado não tinha nada, o gosto lembrava beurre noisette e nem preciso dizer que manteiga e lagostim nasceram para andarem juntos. Que delícia.
Esse mero, perfeitamente selado em frigideira pelando, sem óleo, era outro primor. Simples e gostoso. Com uma metade de cenoura e um vinagrezinho com sabor de spruce (espécie de pinho).
Nesses menus intermináveis sempre há uma coisa ou outra que impressiona menos. Foi o caso do mexilhão abaixo, servido cru (e passado em um pó verde) e um molho contido em folhinhas de couve de Bruxelas.
Vai uma tarteletezinha de ouriço aí?
O chef Magnus Nilsson é gente que faz. A cada 10 minutos, mais ou menos, aparecia para finalizar algum prato à mesa, e explicar. Aqui, ele coloca um caldo de carne “filtrado através de musgo da floresta” sobre um “mexidão” de grãos e sementes dos arredores, temperados simplesmente com o que o menu explica ser “a big lump of butter”. Um nacão de manteiga. Revigorante, crocante, complexo, agradavelmente estranho.
Aí, finalmente, chegou a carne maturada. Nilsson é o rei da carne maturada. Envelhecida a seco em uma saleta especial do restaurante por até 7 meses! Naquela noite, era sirloin, que tinha sido maturado “apenas” 4 meses. Indescritível de tão bom. E servido COM a gordura, quase tão volumosa quanto a carne em si. Confesso: adoro comer bife com a gordura – finalmente, achei um restaurante onde não só pega bem fazê-lo, como recomenda-se!
Trazem a carne à mesa em pedaços inteiros, depois partidos ao meio e servidos, com couve.
Um jantar no Fäviken não é para os fracos. A horas tantas, o chef aparece com um osso enorme, que serra ao meio para extrair o tutano.
Aí mistura esse tutano com cubos de coração de vaca (cru) e folhas “que jamais viram a luz do dia”.
E ao lado, um belo de um pão tostado, sobre uma pedra.
De-li-ci-o-so!
Magnus usa leite e derivados em muitas coisas. A mais estranha delas? Esses wafers de…. colostro de vaca!
No sorvete de beterraba e blackcurrant vai mais um pouco daquele leite maravilhoso…
E quem é que precisa de sorveteira elétrica quando se pode usar uma daquelas pré-históricas, com manivela? 😉
Sorbet de leite azedo, geleia de framboesa, gemada de pato. Nham. Melhor sobremesa da noite! Geladinha, espumosa, pouco doce…
E dá-lhe gema: aqui de novo, em crosta de açúcar, sobre migalhas de… pão de tronco. Não me perguntem – as migalhas não tinham sabor marcante, serviam para dar crocância.
Não vou entendiá-los com uma descrição minuciosa das mignardises, mas basta dizer que de óbvias não tinham NADA. Umas gostosinhas, outras…… provocantes. Se é que me entendem….
Para acompanhar, uns licores igualmente indecifráveis/nada-familiares (um de ovo de pato), trazidos até nós em cesta de vime pelo gerente/maître/sommelier/faz-tudo Johan Agrell, um dos melhores funcionários de salão que já vi.
Resumo? Foi uma noite estranha, surreal, intensa em que provamos uma cozinha visceral, radicalmente presa à natureza, que por maluco que possa soar, me pareceu a maior homenagem que já se fez à cozinha das avós, das fazendeiras, das mulheres de outras gerações que sabiam cozinhar pratos de cabo a rabo e viam mais de perto a vida e a morte daquilo que levavam ao fogão. Como a Maria, da minha infância, que matava a galinha sobre a pia, uma mão no pescoço rugoso, outra no facão, para recolher o sangue que viraria o molho pardo do almoço.
O moderno, no Fäviken, é o modo como olham para o passado. Destrincham um bicho de cada vez, penduram certos pedaços para maturarem, assam e grelham outros em peças inteiras, com o osso, fazem compotas e conservas para guardar na cave, recebem os ovos do vizinho, assam o pão, etc. Uma cozinha em que o pré-preparo restringe-se ao mínimo, fazendo todo o resto só na hora do jantar. E pelo próprio chef, coisa cada vez mais rara. Que apresenta os pratos sem firulas, risquinhos, quadradinhos, espuminhas e quetais, deixando a comida falar mais alto do que a apresentação.
O ambiente, espécie de celeiro com aromas de lareira e luz baixa e velharias de fazenda ornando as paredes de madeira, sublinha a linha seguida pela cozinha: raiz, história, rusticidade. Comemos os aperitivos em um salão com peles e uma grande lareira e depois subimos larga escada de tábuas rangentes para terminar em um sótão dramaticamente desnudo, poucos feixes de luz a iluminar charcuteries que pendem do teto, feitas, claro, ali mesmo.
Mas chega. Isso aqui já está virando um post-livro. E dificilmente palavras pintariam um fiel retrato do que vi e vivi ali. Uma das experiências gastronômicas mais fortes e memoráveis da minha vida.
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